OCUPAÇÃO by Fado Bicha

OCUPAÇÃO
O título do álbum traduz um duplo movimento. Por um lado, o projeto Fado Bicha simboliza a ocupação de um património ao qual as pessoas como nós acederam apenas condicionalmente ao longo do tempo ou, pelo menos, desde que há registos que permitem traçar uma história do fado. As pessoas lgbti, embora façam parte dessa história e também da prática atual do fado, dificilmente puderam criar e deixar um legado artístico que refletisse integralmente as suas experiências e identidades. Falamos das letras escritas, das possibilidades de expressão desenvolvidas, das experimentações permitidas. E falamos de bem-estar e saúde mental também. Há uma rigidez cisheteronormativa no fado (tanto na prática artística como na indústria que a sustenta) que espelha e talvez até ultrapasse a que encontramos na sociedade portuguesa ou na comunidade musical como um todo e que exclui muitas vivências e particularidades.
Ainda se sente muito no fado o efeito que a ditadura lhe imprimiu, ao longo de mais de quarenta anos, apropriando-se dele e usando-o como bandeira. Apresentarmo-nos como Fado Bicha e criarmos um álbum que bebe desse património de uma forma genuína e sem pedir licença a ninguém é ocupar um lugar que não existia senão em fantasia, é sentar à mesa numa cadeira que não estava lá.
Por outro lado, o título reflete também a própria ideia de trabalho, de prática contínua, articulando a liberdade e a ideia de responsabilidade individual e coletiva, que é como encaramos a pesquisa e a ação artivista que subjazem ao nosso projeto.
O nosso primeiro álbum surge após cinco anos de trabalho e desenvolvimento do Fado Bicha, depois de mais de duzentos concertos em Portugal, no Brasil e outros seis países europeus. Condensa dois anos de colaboração com Luís Clara Gomes, o produtor do álbum, músico português conhecido como Moullinex. E reúne releituras de canções que cantamos quase desde o início com novas criações que apontam caminhos diferentes para a nossa música no futuro, divergindo das estruturas clássicas do fado mas mantendo o seu caráter autêntico, dramático e confessional em elementos dos arranjos de João Caçador e na voz crua de Lila Tiago. Para este álbum, convidámos algumas artistas da cena queer portuguesa, que são nosses pares e amigues. Symone de la Dragma, passarumacaco, Labaq e Trypas Corassão são as colaborações listadas, em voz, instrumentação, co-composição e/ou coprodução. Alice Azevedo (uma atriz e ativista trans) e Bernardo Araújo (um jovem poeta de 13 anos) fazem também aparições em duas faixas do álbum e há uma composição que foi partilhada com Adriano Cintra, ex-músico da banda brasileira Cansei de Ser Sexy, e também fados clássicos de Alfredo Marceneiro ou Frederico Valério, com novos arranjos e leituras conceptuais. Das doze faixas, sete são composições inteiramente originais e nove têm letras originais.
Liricamente, o álbum percorre alguns lugares associados a uma experiência queer em Portugal no século XXI, recorda e homenageia várias figuras da nossa precária ancestralidade, como Valentim de Barros (em "Requiem para Valentim") ou Gisberta Salce (em "Medusa-me") ou da nossa comunidade viva, como Alice Azevedo (em "Fado Alice"), faz críticas mordazes ou contundentes à masculinidade tóxica ("Crónica do maxo discreto" ou "Medusa-me"), aborda dores e dissabores das identidades bichas num mundo em que a rejeição é a nossa língua materna ("De costas voltadas" ou "Fado do ciúme") e ensaia hinos de afirmação e recuperação do lugar de subalternidade ("Lila Fadista" e "Fogo na casa"). Há ainda um aspeto muito importante de reflexão da realidade portuguesa, um país de tradição patriarcal, colonialista e racista, em que a discussão do passado esclavagista é ainda um tabu, assim como a realidade de desigualdade racial atual e onde um partido neofascista acaba de se sagrar como terceira força política. Faixas como "ESTOURADA", "Fado Ribeiro Santos" e "Povo pequenino" oferecem chaves de leitura poética do passado e presente de Portugal que traduzem a frustração e preocupação de Lila e João com a incapacidade coletiva de se pensar a liberdade como uma prática necessariamente diária e desconfortável.
Gostamos de pensar que "OCUPAÇÃO" é um manual de sobrevivência queer em forma de música e discurso, com muito da dor, do luto, da exaltação e da luta que fazem parte das vidas das pessoas lgbti em Portugal em 2022.
Tracklist
1. | Requiem para Valentim | 3:53 |
2. | ESTOURADA (com Symone de lá Dragma) | 4:46 |
3. | 1997 (com Bernardo Araújo e passarumacaco) | 2:48 |
4. | Lila Fadista | 3:20 |
5. | De costas voltadas | 3:01 |
6. | Crónica do maxo discreto | 3:00 |
7. | Fado do ciúme (com Labaq) | 4:16 |
8. | Medusa-me (com Trypas Corassão) | 6:14 |
9. | Fado Ribeiro Santos | 2:19 |
10. | Fogo na casa | 5:01 |
11. | Fado Alice (com Alice Azevedo) | 4:03 |
12. | Povo Pequenino | 2:38 |
Credits
License
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O Fado Bicha é um projeto musical e ativista criado e desenvolvido por Lila Fadista, na voz e letras, e João Caçador, nos instrumentos e arranjos. O projeto assume-se de intervenção, começando na representatividade da comunidade LGBTI, e adensando-se pelos temas que abordamos e as posições em que nos colocamos, falando sobre género, colonialismo, racismo, feminismo e direitos dos animais.